AUGUSTO PONZIO ENTREVISTA - Augusto Ponzio

Vai ai contenuti

Menu principale:

AUGUSTO PONZIO ENTREVISTA

ENTREVISTA 1
AUGUSTO PONZIO: COMO FALAR DAS ÀS PALAVRAS 2
Por Neiva de Souza Boeno 3

Em 2010, participei do 3º Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana, evento organizado e promovido pelo Grupo de Estudos de Gêneros do Discurso (GEGE), coordenado pelo Prof. Valdemir Miotello, da Universidade Federal de São Carlos (São Carlos – SP).
Nesse evento houve a participação de dois professores italianos, importantes estudiosos da obra de Bakhtin, o Prof. Augusto Ponzio e a Prof.ª Susan Petrilli, ambos da Università degli Studi di Bari, na Itália. Esse encontro influenciou a orientação dos meus estudos e minhas leituras sobre Bakhtin e a Filosofia da Linguagem, dando origem ao projeto de minha dissertação de mestrado, posteriormente desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem na Universidade Federal de Mato Grosso e, em parte, na Università di Bari, na qual pude contar com o acompanhamento do Prof. Augusto Ponzio, e na Università del Salento, em Lecce, com a coorientação da pesquisa pelo Prof. Luciano Ponzio. Na oportunidade, ele me concedeu uma entrevista, gentil e dialogicamente respondendo às perguntas, com muita vontade de fazer “circular” a palavra, assim como acontecia no chamado “Círculo de Bakhtin”. Mais do que simples respostas, as palavras do Prof. Augusto Ponzio são a expressão de um diálogo, em que a escuta é essencial e a compreensão respondente envolve o modo singular de cada um ser no mundo “sem álibi”. Consequentemente, a esperança de um futuro melhor, aquele da vivência juntos e do encontro com o outro, da abertura ao outro, da aceitação do outro: o outro em relação a mim e o outro dentro de mim, a alteridade do outro eu e a alteridade do próprio eu. A entrevista, bastante longa, foi feita em três encontros consecutivos, no escritório particular do professor, em Bari.

1 Esta entrevista, originalmente feita em língua italiana sob o título “Come parlare delle alle parole”, versão publicada nesta edição, foi traduzida por Florence Carboni, em colaboração com Neiva de Souza Boeno e Marcus Vinicius Borges Oliveira. Florence Carboni é professora do Departamento de Línguas Modernas do Instituto de Letras (ILET) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLET), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre - RS, Brasil. fcarboni@via-rs.net. Marcus Vinicius Borges Oliveira é fonoaudiólogo, doutorando em Linguística pela IEL/UNICAMP, Campinas - São Paulo, Brasil. marcus.oliveira.fono@gmail.com
2 Informamos que o corte na preposição que compõe o título (DAS) e algumas marcas de oralidade visualizadas no decorrer da entrevista foram colocadas pelo próprio Prof. Ponzio, que generosamente acompanhou o processo de tradução.
3 Professora de Língua Portuguesa e Literatura, Mestre em Estudos de Linguagem, efetiva na rede pública. Atualmente trabalha na Superintendência de Educação Básica, da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, Cuiabá-MT, Brasil. neivaboeno@yahoo.com.br

Augusto Ponzio é considerado um dos maiores estudiosos em Bakhtin na atualidade. Nasceu em San Pietro Vernotico, Brindisi, Itália, em 17 de fevereiro de 1942. Desde cedo desenvolveu muitas habilidades como pinturas, desenhos, caricaturas, criação de histórias em quadrinhos e contos ilustrados, além da paixão pela leitura, música e arte de uma forma geral.
Graduado em Filosofia no ano de 1966, pela Università degli Studi di Bari Aldo Moro (também conhecida como Università di Bari), com a tese em Filosofia Teorética, orientada por Giuseppe Semerari, na qual versou sobre fenomenologia da relação interpessoal, referindo-se particularmente à Totalité et Infini [Totalidade e Infinito], de Emmanuel Lévinas.
De 1966 a 1969, assumiu o cargo de Professor de Filosofia em escolas de ensino médio, chamadas de Liceus, e de Filosofia Moral na Università di Bari, como Professor Assistente. Em 1969, fez o concurso nacional e foi efetivado como Professor Ordinário 4 de Filosofia, História, Psicologia e Pedagogia em Liceus e Institutos de formação.
Em 1970, assumiu o cargo de Professor de Ensino de Filosofia da Linguagem na Facoltà di Lingue e Letterature Straniere na Università di Bari, deixando as aulas nos Liceus. Desde 1980, é Professor Ordinário de Filosofia da Linguagem.
Na Universidade de Bari lecionou ainda: Semiotica (1995 a 1997); Semiotica del testo (1997 a 2001); Teoria della comunicazione (de 1995 a 1998); Linguistica Generale (de 1998 a 2003), na Facoltà di Scienze della Formazione Corso di Laurea in Scienze della comunicazione e na Facoltà di Lingue e Letterature Straniere (2002 a 2012).
De 1988 a 2012, foi Coordenador do Curso de Doutorado em Teoria da Linguagem e Ciência dos Signos, curso que faz parte, desde 2006, da Escola de Doutorado em Ciências Humanas, na Universidade de Bari. Atualmente é Professor de Filosofia da Linguagem no Dipartimento di Lettere Lingue Arti Italianistica e Culture Comparate, na Universidade de Bari.
Além do trabalho como professor, tem contribuído como editor e tradutor na difusão do pensamento de Bakhtin, Lévinas, Barthes, Umberto Eco, Marx, Rossi-Landi, Pedro Hispano, Schaff, Sebeok, entre outros. Publicou muitos livros de sua autoria, além de livros como editor e tradutor. Participou de diversas conferências na Itália e no exterior, palestrando, ministrando minicursos e aulas. Muitos pesquisadores escrevem sobre sua pesquisa científica.

4N.T.: “Professor ordinário” é o cargo de maior nível na carreira de um professor efetivo nas Universidades da Itália, além desse, existem o cargo de Professor Assistente, Professor Associado e Professor Pesquisador. Os textos de Bakhtin e de seu Círculo não são para serem estudados. Eles pedem para ser lidos, escutados, acolhidos em uma relação participativa, de compreensão respondente, em uma relação que inclua no “Círculo de Bakhtin” também aquele que lê estes textos hoje.

4 de julho de 2013.
NB – Nascido na Cidade de San Pietro Vernotico, província de Brindisi – região da Puglia, Itália, com um falar italiano mais próximo do português falado no Brasil, quais as memórias, cenas da vida que mais aprecia se recordar, prestes a completar 72 anos de vida?

AP – San Pietro Vernotico, cidadezinha agrícola. Meu pai era dono de um cinema. Desde o início dos anos trinta, sua vida foi inseparavelmente ligada a esse cinema. Quando criança, para mim, ir ao cinema não tinha apenas a atração do divertimento, mas também aquela de permanecer com meu pai à noite, muitas vezes até tarde. O ladrão de Bagdá foi o filme que eu assisti por inteiro e que me lembro.

Vinhedos e oliveiras eram os principais recursos da minha cidadezinha. Também o cinema de meu pai dependia dos ritmos, das safras e dos ciclos agrícolas. Nos arredores da cidade, ao longo da ferrovia, havia várias vinícolas.
Os dias seguiam a cadência da vida rural. Na minha casa também se almoçava ao meio-dia. E aqueles que chegavam atrasados não eram esperados, mesmo se esse atraso era a norma, como no caso da minha irmã e meu, porque voltávamos mais tarde da escola. Todas as lojas também se fechavam ao meio-dia.
Pelas ruas, reboques e bicicletas. Em frente ao cinema ficava um grande estacionamento, a pagamento, para bicicletas. Pessoas vinham ao cinema de bicicleta, também dos municípios vizinhos, sobretudo de Cellino. Na praça, à noite, havia muitos homens que discutiam sobre a vida rural.
O período da colheita era o momento central do ano. Eu também, naqueles dias, ia para o campo, pela manhã. As tardes de verão eram muito longas. Eu geralmente as passava lendo e pintando. Ouvia-se de vez em quando o grito do vendedor de gelo que percorria as ruas da cidade com a sua bicicleta.
Em casa, não se falava o dialeto. A falta de conhecimento do dialeto poderia ser causa da marginalização por parte dos meus colegas do ensino médio que, ao contrário, falavam-no como língua materna. Tive que aprendê-lo rapidamente, apesar de nunca ter conseguido falá-lo perfeitamente. É o dialeto salentino, próximo da língua portuguesa, com “variantes sampietranas", próprias de San Pietro Vernotico: por exemplo, abbasciu (abaixo); pressa (pressa); riffa (rifa); manta (manta - coberta); scalora (escarola)... No dialeto salentino, "eu" se diz "ieu".
No meu dialeto traduzi, da Bíblia, o Qohélet ou Eclesiastes. Eu li e reli Qohélet em diferentes traduções italianas (mas também em francês, inglês, espanhol), aproveitava-me também das bíblias dos hotéis. Sobre as traduções de Hevel, há o belo ensaio de Stefano Arduini (Hevel, em La ragione retórica, Guaraldi, 2004). Das traduções italianas, devo mencionar a de Guido Ceronetti
(Einaudi, 1970 – que prefiro –, Einaudi, 1980, e Adelphi, 2001; esta última é publicada junto com as duas primeiras) e a de Erri De Luca (Feltrinelli, 1996). A um certo ponto, comecei a pensar Qohélet no meu dialeto (o dialeto de Lecce, mais especificamente de San Pietro Vernotico, a minha cidade). Pareceu-me que, neste dialeto esse texto se deixa escutar e compreender melhor, pelo menos para mim, como se esse dialeto, em seus lugares-comuns, fosse muito adequado para acolher e hospedar o pensamento de Qohélet. Eu diria mais: como se a visão do mundo desse dialeto fosse qohelética. Enquanto lia, no prefácio de Ceronetti (2001), as considerações sobre a perda do som de “u”, quando se passa do hebraico hakkòl hével ur’ud rùach, para o italiano tutto è fumo e mangiare di vento [“tudo é fumaça e comer de vento”], me veio espontaneamente o confronto com a frase em dialeto Tuttu ete fumu e gnùttere ientu. Comecei a traduzir.
Não conheço o hebraico. A minha versão no dialeto salentino, na sua variante do dialeto sampietrano (que se parece com o dialeto de Palermo, o palermitano – eu tive oportunidade de constatá-lo diretamente na cidade de Mistretta, na Sicília, por ocasião de um encontro sobre Antonino Pagliaro; a tal ponto que Domenico Modugno 5, que cresceu em San Pietro Vernotico, como eu, costumava, em algumas de suas canções, fazer passar, com alguns ajustes, o dialeto dessa cidade por siciliano), é uma versão de versões (“tradutor de tradutor…”). Se houver uma tentativa de recuperar algo originário aqui, esse algo é o meu dialeto: é ele que nessa versão eu tentei recuperar. Qohélet é apenas um pretexto, um pretexto que provoca bem o reemergir de expressões e palavras, das quais a memória, não só a minha, pessoal, tende a se enfraquecer.

NB – O senhor gosta tanto de ler e de falar, características que o levaram a ser um grande pesquisador. Por isso, esta pergunta se refere às leituras. Que outras leituras e hobbies faz além das leituras de caráter científico?

AP – (Leituras de caráter científico) De Lévinas: eis um possível ponto de partida para reconstruir o percurso da minha pesquisa. A seguir, Bakhtin. De Lévinas a Bakhtin e de Bakhtin a Lévinas: um itinerário, uma viagem na palavra. E nesse percurso, Kierkegaard, Peirce, Marx, Blanchot, Bataille, Barthes, Kristeva, Rossi-Landi, Schaff, Sebeok... Trata-se de uma reflexão não interrompida, embora essa não exclua a escuta de outras palavras, que, todavia, tem contribuído ao prosseguimento de um caminho que, partindo de Lévinas, volta para Lévinas, um caminho que não tem a forma de um círculo, mas de um espiral.
Mas o meu interesse pela linguagem e pela linguística é anterior e começa com um trabalho que fiz durante os meus estudos universitários, sobre um tema que não escolhi, mas que me foi imposto por Giovanni Papuli, que se tornaria professor ordinário de História da Filosofia, em Lecce, mas que, naquela época era professor assistente na Universidade de Bari, na cadeira de História da Filosofia pertencente a Antonio Corsano.

5N.T.: Modugno (1928-1994) foi um dos mais importantes cantores italianos do século XX. Iniciou sua carreira como ator e participou de vários filmes. Tornou-se conhecido na década de 1950. A sua canção Nel blu dipinto di blu foi um de seus maiores sucessos em todo o mundo e ficou conhecida como Volare, um marco da música italiana.

O tema do trabalho era “La métaphysique de La grammaire di C. C. Du Marsais” [“A metafísica da gramática de C. C. Du Marsais”] (inédito, 1963). César Chesneau Du Marsais (1676-1756) participou na elaboração dos verbetes de Linguística na Encyclopédie de Diderot e D’Alembert. Naqueles anos, estava interessado na fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty e, de Husserl, estudava Esperienza e giudizio [Experiência e Juízo], que Giuseppe Semerari havia adotado para o primeiro e segundo ano de Filosofia Teorética. Assim, fiz questão de evidenciar particularmente a distinção estabelecida por Du Marsais entre “adjetivos físicos”, que indicam as impressões que os objetos geram sobre os nossos sentidos, e “adjetivos metafísicos”, que, ao contrário dos primeiros, indicam o ponto de vista daquele que considera os objetos. Foi a primeira vez que me ocupei, e com grande interesse, de questões de Filosofia da Linguagem. A importância de Du Marsais, da qual já tinha me dado conta, me foi confirmada depois – quando me ocupava (em 1969-70) de Chomsky e da Linguística Cartesiana – pelo livro de Rosiello, Linguistica illuministica [Linguística iluminística] (Bolonha, Il Mulino, 1967).
(Outras leituras) O meu herói era Pecos Bill 6, da história em quadrinhos de Guido Martina, publicado na coleção Albi d’Oro [Álbuns de Ouro], da Editora Mondadori: Pecos Bill, "o lendário herói do Texas", que não usava nem pistola nem Winchester, que falava aos lobos e aos "Cavaleiros do Céu" e andava pelas pradarias com o grotesco Davy Crockett e Calamity Jane e a Pequena Sue, sobre o cavalo Turbine. Entre as minhas primeiras leituras de adolescente, havia a Storia del primo amore, de Leopardi, e Graziella, de Lamartine, do qual tinha visto a versão cinematográfica. Comecei a escrever um romance que tinha como modelo estilístico o livro Piccole donne, de Giorgio Scerbanenco, e Fanali gialli, de Brunella Gasperini. Três ou quatro capítulos foram perdidos. Fazia histórias em quadrinhos, com personagens inventados por mim e fábulas ilustradas. Possuo ainda, e em boas condições de conservação, a maior parte desses álbuns de histórias em quadrinhos e de fábulas. Os principais personagens das histórias em quadrinhos eram Fifi e Micetta. Entre as histórias, a mais bela é, talvez, Il fanale [O lampião de rua]. Todas as histórias foram publicadas e existe também uma edição em francês. No andar de cima da casa materna (nessa altura era só da vó e da tia Savia, porque nós morávamos em uma outra, que se comunicava internamente com a casa da vó), veio morar, como novo inquilino, um representante da Editora Riuniti, que literalmente encheu as duas salas acima com pilhas de livros.

6 N.T..: Ainda continua sendo seu herói preferido. Em seu aniversário de 71 anos (17/fev/2013), a imagem do herói foi estampada em seu bolo de aniversário. Vale conferir o “Album” no site www.augustoponzio.com.

Entre outras coisas, li também o Manifesto do partido comunista, do qual não suportava o tom sábio.
Aos meus pais, costumava pedir livros como presentes. Eles gostavam sobretudo quando pedia obras de estudo como A História da Civilização, de Durant, e a História da Literatura italiana, de Flora. Na ocasião de minha promoção ao terceiro colegial, ganhei da tia Savia a História da Filosofia, de Abbagnano. Do inquilino da vó, comprei uma edição muito bonita, com quadros a cor, dos contos de fadas de Andersen.
fig1fig2 fig3
Figura 1. Pecos Bill e seu cavalo Turbine. Desenho de Augusto Ponzio
Figura 2. Il Fanale [O lampião de rua].
Texto e ilustração de Augusto Ponzio
Fonte: Disponível em <http://www.latartarugaracconta.com/index.html>
Figura 3. Fifi contro il mostri [Fifi contra o monstro]. Texto e ilustração de Augusto Ponzio (história em quadrinhos)
Fonte: Disponível em
<http://www.latartarugaracconta.com/index.html>

NB – Nos tempos de faculdade, enquanto estudante, e depois, como professor e pesquisador, com quais teóricos o senhor teve a oportunidade de dialogar face a face? Houve alguma conversa que o tenha marcado ou influenciado diretamente em sua carreira acadêmica?

AP – O fim da escola pareceu-me uma grande libertação: finalmente, o tempo era meu. Li muitíssimo, segundo um plano de estudo muito preciso, centrado nos problemas de Filosofia Moral e de Filosofia do Conhecimento. Esses estudos acompanhavam o lançamento dos volumes da Editora Il Saggiatore, em especial os da coleção “La cultura”. Li Omaggio a Husserl [Homenagem a Husserl], de vários autores, entre eles Giuseppe Semerari (mas iria notar só posteriormente, depois que o conheci na universidade, que Semerari era um dos autores); Karl Jaspers, La bomba atomica e il destino dell’uomo [A Bomba Atômica e o Futuro do Homem]; Edmund Husserl, La crisi delle scienze europee e la fenomenologia trascendentale [A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental]; Antonio Banfi, Galileo Galilei; Merleau-Ponty, Senso e non senso [Sentido e sem sentido]; Geymonat, Saggi di filosofia neorazionalistica [Ensaios de filosofia neo-racionalistas] (Turim: Editora Einaudi).
Li também várias obras de ficção: Hemingway, Conan Doyle; Il disprezzo [O desprezo], Gli indifferenti [Os indiferentes] e La Noia [O tédio], de Moravia, Pasolini... Vivia o fim da escola como liberdade desenfreada para seguir os mais diversos interesses de leitura, da crítica cinematográfica (Guido Aristarco) ao Enigma dei manoscritti del Mar Morto [“O enigma dos Manuscritos do Mar Morto”] (que reencontrei, na universidade, como tema do curso de palestras de David Donini). E também a História da Filosofia, através de Abbagnano, relida em Geymonat, utilizado durante o ano letivo, mas que agora adquiria uma atração e um sentido diferentes. E também Gellner, Parole e cose [Palavras e coisas...] (Milão: Editora Il Saggiatore) etc.
Na biblioteca provincial de Brindisi, descobri textos de Enzo Paci e o livro sobre o existencialismo positivo de Abbagnano. Durante os meses de setembro e outubro, frequentei assiduamente essa biblioteca. O fato de as aulas na universidade não iniciarem antes de novembro me dava mais tempo disponível, completamente meu. Eu resumia e comentava os textos de filosofia lidos. E comecei a escrever sobre temas filosóficos, primeiro sob forma de breves reflexões e, em seguida, de maneira mais ampla e sistemática. Um caderno de capa alaranjada e intitulado L’esistenzialismo [O existencialismo], que conservo até hoje, foi um dos resultados desse período de transição da escola para a universidade.
No final de 1962, comecei a frequentar a Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bari, tendo me matriculado na Graduação em Filosofia. Com exceção de algumas aulas com Mario Sansone, uma só com Virgilio Paladini e algumas com Antonio Corsano, segui apenas as aulas de Giuseppe Semerari. O Prof. Semerari ensinava então Filosofia Moral e também Filosofia Teorética, mas esta disciplina pertencia ao segundo ano do curso. As aulas eram realizadas em uma sala pequena (Sala VI) porque éramos poucos a frequentá-la – havia também poucos matriculados em Filosofia.
No ano letivo de 1962-1963, Semerari desenvolveu o seu nono ano de ensino universitário. Até então, ele tinha publicado I problemi dello spinozismo (1952), Storicismo e ontologismo critico (1960, 1953, com o título Storia e storicismo), Dialogo storia valori (1955), Interpretazione di Schelling (1958), Responsabilità e comunità umana (1960; 1966), Scienza nuova e ragione (1961, 1966; em 1979 foi republicada como a primeira parte de Civiltà dei mezzi e civiltà dei fini (Verona, Bertani), onde a segunda parte era La lotta per la scienza, de 1965; nova edição organizada por Furio Semerari, com permissão de Carlo Sini (Milão, Guerini e Associati, 2009), La filosofia come relazione (1961, nova edição aos cuidados de Ferruccio De Natale, Milão, Guerini e Associati, 2009), Da Schelling a Merleau-Ponty (1962).
A passagem de Semerari ao relacionismo e depois à fenomenologia de Husserl e de Merleau-Ponty (Semerari foi, junto com Enzo Paci, o principal responsável pela retomada da fenomenologia na Itália, fazendo também parte do Conselho Editorial da revista de Paci, Aut-Aut, de 1957 até 1973) já estava prefigurada no Storicismo e ontologismo critico, que identifica na ontologia crítica e na análise fenomenológica o projeto comum de problematizar a história a partir das condições da existência individual. Para Semerari, a fenomenologia apresenta-se como real alternativa ao dogmatismo. A fenomenologia não privilegia um só significado do mundo, absolutizando-o, como fazem as filosofias caracterizadas pela angústia da plurissignificabilidade, mas, ao contrário, ela assume a plurissignificabilidade como a própria condição da constituição da verdade e dos outros valores. Segundo Semerari, a Filosofia é tomada de consciência científica da condição humana historicamente especificada. A essa problemática Semerari dedicou o livro significativamente intitulado La lotta per la scienza (Milão: Silva, 1965).
Mas à insegurança, como condição estrutural do ser humano, podemos também reagir exorcizando-a com mistificações, reducionismos e simplificações filosóficas, ignorando e silenciando as inquietantes perguntas que foram feitas, e limitar-nos ao pensamento pós-hegeliano, como fazem autores como Kierkegaard, Marx, Nietzsche e Freud. Semerari reflete sobre essa dúplice atitude da Filosofia, no livro de 1983, Insecuritas. Tecniche e paradigmi della salvezza (nova edição, Milão, Spirali, 2005), e em diversos artigos recentes, publicados primeiro na revista quadrimestral de crítica filosófica Paradigmi, fundada e dirigida por ele em 1982, sucessivamente reunidos no seu livro de 1992, Sperimentazioni (Fasano – Brindisi: Editora Schena).
A primeira relação direta que tive com Semerari aconteceu durante os seminários que ele dava à tarde, duas vezes por semana. Nesses seminários, cada aluno apresentava um trabalho sobre textos indicados por ele. Eu tive que fazer e apresentar um trabalho sobre Le due fonti della morale e della storia [As Duas Fontes da Moral e da Religião 7], de Bergson, obra que encontrei na biblioteca provincial de Brindisi. A minha leitura de Bergson agradou a Semerari, que interveio em meu relato com seus comentários e sínteses, destacando os pontos de minha exposição que ele acreditava serem mais interessantes e sobre os quais desejava chamar a atenção dos alunos.
No curso de Filosofia Teorética, dois livros foram muito importantes para mim: Husserl, Esperienza e giudizio [Experiência e Juízo], e Merleau-Ponty, Fenomenologia della percezione [Fenomenologia da percepção]. Fiquei fascinado com as descrições fenomenológicas da percepção, o estudo de Merleau-Ponty sobre a pintura de Cézanne. É também nesse período que li Diario fenomenológico, de Enzo Paci, a Lettera al padre [Carta ao Pai], de Kafka (Coleção “Le silerchie” da Editora Il Saggiatore) e que descobri a revista Aut Aut. Algumas aulas do curso de Filosofia Teorética, do ano letivo 1963-64, foram reunidas em um volume intitulado Esperienza e predicazione (pronto para impressão, mas não publicado), com comentários de Maria Solimini (minha esposa), organizado por Julia Ponzio (minha filha) e Filippo Silvestri.
Mas voltando a Lévinas, como pude demonstrar em minha tese La relazione interpersonale [A relação interpessoal], defendida em 1966, que fiz sob a orientação de Giuseppe Semerari – ela seria publicada em 1967 (Bari, Editora Adriatica) com uma introdução assinada pelo próprio Semerari e por Antonio Corsano e Cesare Vasoli; mas o primeiro capítulo já fora publicado, por iniciativa do Professor Semerari, naquele mesmo ano, no n.º 95 de Aut Aut (pp. 52-68), a revista dirigida por Enzo Paci –, assim como nas minhas monografias subsequentes sobre Lévinas (1993; 1995), incluindo também a em francês – Sujet et altérité. Sur Emmanuel Lévinas (Paris, Editora L’Harmattan, 1993) –, a concepção de alteridade, que constitui o núcleo da filosofia levinasiana, abre uma nova visão também na Filosofia da Linguagem (ver Lévinas, Filosofia del linguaggio, aos cuidados de Julia Ponzio, Editora Adriatica,1999)
A palavra, como evento único, como encontro, resiste, com a sua dissimetria e a sua anarquia, à unificação, à comunhão, ao pertencimento comunitário em relação a identidades parciais, étnicas, nacionais e à universalização em relação à identidade máxima, total, abrangente, do gênero humano. Como proximidade, como contato, a palavra expressa o que não é tematizado no signo, que não é nem objeto nem objetivo de uma mensagem. O que constitui a "própria significância da significação" é a capacidade que tem o dizer de transcender o dito, de significar por si (ver Lévinas, “Langage et proximité” [“Linguagem e Proximidade”], in: En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger [Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger], 1967, p. 126).

7 N.T.: Tradução em português da obra de Henri Bergson realizada pela Editora Zahar.

A significância do dizer, como proximidade, contato, intercorporeidade, tem todas as características da escritura; essa é excedente e estranha ao ser e às categorias que servem para descrevê-lo. Reconhecer o caráter escritural da relação de alteridade que se realiza no contato da significância do dizer, é perceber o equívoco em que se incorreu, quando se quis ver na relação "face a face", como é descrita por Lévinas, o privilégio concedido ao discurso oral, com a consequente desvalorização da escritura. De fato, como afirma explicitamente Lévinas, no prefácio de L’au-delà du verset (Paris, Editora Minuit, 1982) –, na medida em que é capaz de expressar sempre mais de quanto diz o significante, a linguagem ultrapassa sempre os limites do significado, de modo que o Dizer excede o Dito, e a palavra humana já é escritura.
Sobre esse assunto, ver na revista Athanor 8 (n.14, 2010-2011), na seção intitulada “Conversazioni”, a minha conversa com Lévinas, na ocasião de minha visita à sua casa, em Paris, no dia 20 de novembro de 1988 (publicada originalmente por Augusto Ponzio, Sujet et altérité, Paris, Editora L’ Harmattan, pp.146-148). A palavra é capaz de literariedade, de uma relação em que a escuta, o contato, a presença, o entretenimento constituem o texto, enquanto aquilo que é comunicado ou requerido ou representado se reduz a pretexto. Como marca, como escritura – escritura intransitiva (Roland Barthes) e não transcrição –, como "escritura literária", discurso que não se deixa tomar ao pé da letra, a palavra apresenta (é "expressão", é "face", é "encontro") e não se limita a representar.
No encontro, no evento extraordinário da apresentação do outro, a palavra é, em primeiro lugar, apresentação do outro; o qual, antes de ser concebido como "este outro", como "ele", antes de ser definido, tematizado, considerado em função de uma certa imagem e definido em função de um certo papel social, é dotado, como interlocutor e interpelado, de um sentido autônomo. Pelo próprio fato da sua presença como outro, ele faz sentido por si, refere-se apenas a si mesmo, "não tem quididade". Para Lévinas, a essência da linguagem encontra-se nesta interpelação, no vocativo.

NB – Fale-nos sobre o trabalho que o senhor vem desenvolvendo na Itália.

AP – O interesse pela relação entre pensamento-linguagem e palavra alheia me induziu a ocupar-me, nas minhas primeiras resenhas, do livro de Alfred J. Ayer,

8 ATHANOR - Semiotica, Filosofia, Arte, Letteratura é o título de uma Série Anual de Publicações do Departamento de Lettere Lingue Arti Italianistica e Culture Comparate, da Università degli Studi di Bari Aldo Moro, organizada por Augusto Ponzio, desde 1990.

Il concetto di persona (1963), publicado em 1966 nas edições de Il Saggiatore. O texto da resenha foi recebido por Ugo Spirito no Giornale Critico della Filosofia Italiana (II, 1967, pp. 322-330). Ayer, nessa obra, que é uma coletânea de nove ensaios, ocupa-se do problema da verdade, da relação entre corpo e mente, da alteridade, da comunicação, do significado dos nomes próprios, da função da análise da linguagem, da validade das leis científicas e das asserções sobre o futuro, assim como do problema da liberdade.
Interessado ao mesmo tempo em Filosofia Moral, no artigo “L’etica e i suoi fondamenti” (Giornale Critico della Filosofia Italiana, I, 1968, pp. 125-133), analisei o livro de Richard Schubert-Soldern (1852-1924), Fondamenti di un’etica (Grundlagen zu einer Ethik, 1887), traduzido em italiano em 1966 por Ervino Pocar (Napoli, Morano). Na Biblioteca Municipal G. Melli de San Pietro Vernotico, Brindisi (minha cidade de origem, em que vivi antes de me transferir, em 1970, para Bari), que contém um acervo de cerca de 18.000 livros doados por Giuseppe Melli (1861-1930), professor de Filosofia Moral e de História da Filosofia na Universidade de Florença (destaco a coletânea de seus escritos, organizada por G. Rascazzo, Etica e solidarietà, Rotare Brindisi Valesio, 2005), e que leva seu nome, encontrei esse livro na edição original (Lipsia, 1887) e outros textos do mesmo autor e de Wilhelm Schuppe (1836 -1913), com a corrente filosófica , a “immanente Philosophie”, a qual Schubert-Soldern 9, está associado, ainda que de maneira bastante original. Essa biblioteca da minha cidade natal, com um rico acervo de livros de e sobre Filosofia alemã da segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX, foi visitada também por Giuseppe Semerari, em 1970, que foi ali para procurar livros vinculado à sua pesquisa na época.
Em estreita ligação com a questão da relação eu-outro e com os problemas de ordem ética, continuei a me ocupar, na segunda metade dos anos sessenta e na primeira metade dos anos oitenta, de Linguística e de Filosofia da Linguagem. Em 1970, publiquei Linguaggio e relazioni sociali, o meu segundo livro depois de La relazione interpersonale, editado por Vito Macinagrossa, entre as publicações da Editora Adriatica, de Bari. Muitos livros seguiram-se, nos moldes da Editora Adriatica, incluindo também livros traduzidos e coletivos, sendo logo a seguir lançada a coleção “Segni di segni” [Signos de signos], organizada por mim e Maria Solimini.
Linguaggio e relazioni sociali reuniu uma série de artigos publicados anteriormente na revista Filosofia, de Augusto Guzzo, no Giornale Critico dela Filosofia Italiana, dirigido por Ugo Spirito e na Aut Aut, de Enzo Paci. Os autores de referência dos artigos – “Fenomenologia del significato”, “Alterità e comunicazione”, “Comunicazione come prodotto e come prassi”, “Dimensione e classi sociali” – pertenciam a disciplinas e linhas teóricas diversas, da Linguística, como Saussure, Noam Chomsky, André Martinet, Tullio de Mauro, à Filosofia como Marx, Husserl, Merleau-Ponty, André Gorz, particularmente à Filosofia da Linguagem e à Semiótica, incluindo principalmente Ogden e Richards, Roman Jakobson, Wittgenstein, Charles Stevenson, Ferruccio Rossi-Landi.

9 N.T.: Richard Ritter von Schubert-Soldern (1852-1924/1935?), filósofo checo de origem alemã, foi professor de Filosofia e um dos principais representantes da corrente conhecida como “Filosofia da imanência”. Obras principais: Über Transzendenz des Objekts [Sobre a transcendência dos objetos], 1882; Grundlagen einer Erkenntnistheorie [Fundamentos de uma teoria do conhecimento], 1884; Des menschliche Glück und die Soziale Frage [A felicidade humana e a questão social], 1896.

Eu tinha revisado o livro de Ferruccio Rossi-Landi, Il linguaggio come lavoro e come mercato, de 1968, na revista Filosofia (1970). Entrei em contato direto com ele pedindo que ele publicasse em sua Revista Ideologie o meu artigo “Ideologia della anormalità linguistica”, que, entre outras coisas, era uma crítica ao livro de Sergio Piro, Il linguaggio schizofrenico (Milão, Feltrinelli 1967).
A seguir, na revista de Rossi-Landi, “Ideologie” (n. 16-17, 1972, pp.137-212), foi publicado o artigo “Grammatica trasformazionale e ideologia politica”, uma análise crítica das posições sociológico-políticas e linguísticas de Noam Chomsky. Esse artigo, publicado no mesmo ano em francês, no fascículo monográfico intitulado Linguistique, structuralisme et marxisme da revista L’Homme et la Société (28, pp. 93-111), juntamente com artigos de Henri-Pierre Jeudy, Serge Latouche, Ferruccio Rossi-Landi e Adam Schaff (volume reeditado em português com o título Linguística, Sociedade e Política, Edições 70, Lisboa, 1975) e publicado como pequeno livro (de 120 p.) no ano de 1974, em Buenos Aires pela Editora Nueva Visión, constitui a primeira parte do meu livro de 1973, Produzione linguistica e ideologia sociale (Bari, De Donato), que foi traduzido em espanhol (Producción linguística e ideologia social, Corazon Editor, Madrid) no ano seguinte; em sérvio, 1978 (Jezicna proizvodnja i drustvena ideologija, Zagabria, Skolska knjiga); em francês, no ano de 1992, Production linguistique et idéologie sociale (Editions Balzac, Candiac, Canada; edição ampliada e modificada em relação à original).
Referindo-se à edição espanhola de 1974, no recente seminário (08 de novembro de 2010), na Universidade de Campinas (UNICAMP), no Brasil, o Prof. Sírio Possenti observou:
Quando jovem, eu li com grande "prazer ideológico" o seu livro Producción linguística e ideologia social. O Brasil ainda era uma ditadura e a esquerda refutava aquilo que em Chomsky era visto como burguês, pela sua identificação, por assim dizer, iluminista (embora algumas de suas atitudes fossem consideradas interessantes, porque "anti-americanas"). Se odiava o falante-ouvinte ideal, o inatismo, etc. Quando li no seu livro a comparação entre algumas características de Chomsky e fragmentos da Declaração de Independência dos Estados Unidos - para apoiar a sua tese de que "a posição de Chomsky não estava longe daquela de Paine e de Jefferson" – me pareceu ter encontrado excelentes argumentos para não ser chomskyano (embora forçado a ser laboviano, porque pelo menos para Labov havia uma sociedade em camadas que condicionava as variações linguísticas, e isso, ao menos autorizava a rejeitar o falante ouvinte ideal).
Aparentemente, na época, a edição em espanhol do livro de 1973 obteve uma particular atenção de vários estudiosos, entre eles Carlos Faraco, que conheci em novembro de 2010, em São Carlos-SP (Brasil), e que se empenhou na tradução em português da nova edição (Bari, Graphis, 2006). Esse livro, também ampliado e atualizado em relação à edição italiana, foi publicado no Brasil com o título: Linguística Chomskyana e ideologia social (Curitiba: Editora UFPR – Universidade Federal do Paraná, 2012).

NB – O senhor fez diversos desenhos e pinturas, referente a vários momentos vivenciados. Fale-nos sobre essa outra escritura que o senhor fez (ou se ainda a faz) e como a considera?

AP – Quando menino fazia histórias em quadrinhos, com personagens inventados por mim, e contos ilustrados. Eu ainda tenho, e em bom estado, a maioria destes álbuns de histórias em quadrinhos e de contos. Os personagens principais dos quadrinhos eram Fifi e Micetta. Entre os contos, talvez o mais bonito é "Il fanale" [O lampião de rua]. Hoje, podem ser encontrados no site http://www.latartarugaracconta.com, junto com outras histórias ilustradas mais recentes. Aliás, em outro site, o http://www.nontantotempofa.com, podem ser encontradas descrições da minha cidade natal e também a história do cinema de meu pai, contada por mim, assim como meus escritos sobre as bandas que durante as festas do Santo padroeiro tocavam na praça da minha cidade, a praça na qual ficava minha casa.

Eu pintei diversos quadros a óleo. Há uma série que unifica cor e escritura e se intitula Stratigrafie [Grafias estratificadas], com a técnica de óleo sobre tela, pintados não com o pincel, mas com a espátula.
fig4fig5fig6
fig7fig8fig9
Figura 4. Série Stratigrafie
Figura 5. Série Stratigrafie
Há também uma extensa série de caricaturas de personagens, famosos e não, que está reproduzida em meu site: http://www.augustoponzio.com, com o título Volti e maschere [Rostos e Máscaras].
Figura 6. Lévinas
Figura 7. Roland Barthes
Figura 8. Rossi-Landi
Figura 9. Umberto Eco

NB – Em que momento (ou quando) o senhor se interessou pelas teorias bakhtinianas? Como foi seu encontro com Bakhtin?

O interesse por Mikhail Bakhtin (1895-1975) e o seu Círculo teve início a partir da edição em inglês, de 1973 (New York, Seminar Press), de Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na linguística, de Valentin N. Volochinov (1895-1936), uma das vozes mais importantes do chamado "Círculo", livro publicado originalmente em São Petersburgo, então Leningrado, por Priboj, em 1929, e, a seguir, em 1930, na coleção “Problemas de metodologia e de teoria da Literatura”. A inglesa foi a primeira tradução efetiva de Marxismo e Filosofia da Linguagem. A partir dessa, foi feita a edição italiana de 1976 (Dedalo), organizada por mim, com tradução de Nicola Cuscito, exceto pela introdução (não incluída na edição inglesa), que foi traduzida diretamente da edição russa de 1930, por Rita Bruzzese.
Os artigos de L. Matejka e de I. R. Mateika, que acompanhavam a edição inglesa, editada por eles, de Marxismo e Filosofia da Linguagem, foram publicados em italiano no volume organizado por mim, com minha introdução, Michail Bachtin. Semiotica, teoria dela letteratura e marxismo (Dedalo, 1977), juntamente com o trabalho de V.V. Ivanov, de 1973, “Significato dele idee di M. Bachtin sul segno, l’enunciazione e il dialogo per la semiótica contemporanea” [“Significado para a semiótica contemporânea das ideias de M. Bakhtin a respeito do signo, da enunciação e do diálogo”], com o artigo de M. Bakhtin, “O problema do texto” (1960-61), todos traduzidos por Nicoletta Marcialis, e com o artigo de Julia Kristeva “La parola il dialogo il romanzo” 10, (1969), traduzido por Giuseppe Mininni.
Posteriormente, organizei também a edição italiana, na tradução da própria Rita Bruzzese, de Freudismo. Studio critico 11, (1927), de Volochinov (Dedalo, 1977, com introdução de G. Mininni). A seguir, houve uma nova edição deste trabalho, com organização minha e tradução italiana de Luciano Ponzio, Freud e il freudismo. Studio critico, publicado por Mimesis, em 2005. É também minha a organização de Il método formale nella scienza dela letteratura, de Pável N. Medviédev (1891-1938), na coleção da Editora Dedalo “Teoria del linguaggio e della letteratura”, dirigida por Vito Carofiglio, Rosa Rossi, Silvano Sabbadini e por mim. Na mesma coleção, em 1980, publiquei sob o título Il linguaggio come pratica sociale, com tradução de Rita Bruzzese e N. Marcialis, a coletânea de artigos de Volochinov, escritos entre 1926 e 1930, que são: “La parola nella vita e nella poesia” 12, “Che cos’è il linguaggio?”, “La costruzione dell’enunciazione”, “La parola
10N.T.: Esse artigo está publicado em português como capítulo: “A palavra, o diálogo e o romance”, no livro de Kristeva (2005), intitulado: Introdução à semanálise, Editora Perspectiva.
11N.T.: Na edição em português, o título é: Freudismo: um esboço crítico.
12N.T.: A primeira versão desse texto de Volochinov foi publicada em português no livro intitulado Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica,
e la sua funzione sociale”, “Le più recenti tendenze del pensiero linguistico occidentale”, “Poetica e linguistica”. Essa coletânea foi publicada novamente, com tradução de Luciano Ponzio, com o título Linguaggio e scrittura, pela Editora Meltemi, em 2003.
Em 1980, nas edições da Dedalo, publiquei o livro Mikhail Bakhtin. Alle origini della semiotica sovietica, a primeira monografia completa, em nível internacional, sobre Bakhtin e o seu Círculo. A essa, seguiram-se: em 1981, Segni e contraddizioni. Tra Marx e Bachtin (Bertani, Verona); em 1992, pela Editora Bompiani, Milão, na coleção “Il campo semiotico” dirigida por Umberto Eco, Tra semiotica e letteratura. Introduzione a Michail Bachtin; em 1994, Scrittura, dialogo e alterità. Tra Bachtin e Lévinas (Florença, La Nuova Italia), com uma nova edição ampliada em 2008 (Palomar, Bari); em 1997, A revolução bakhtiniana. O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea, editada em espanhol, pela editora Catedra, Madri, e agora também em português, em edição ampliada, no Brasil, pela Editora Contexto.
A terceira parte do Marxismo e filosofia da linguagem, com o título “Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas. Tentativa de Aplicação do Método Sociológico aos Problemas sintáticos", foi editada em uma tradução italiana do russo em 1995, na coleção de escritos do “Círculo de Bakhtin”, Bachtin e le sue maschere, organizada por mim, por M. De Michiel e P. Jachia (Bari, Dedalo), com escritos de Volochinov, Ivan I. Kanaev (1893-1984), Pável N. Medviédev e do próprio M. M. Bakhtin. Na tradução do russo feita por Luciano Ponzio, esse texto foi publicado como livro da coleção “Il segno e i suoi maestri” – dirigida por Cosimo Caputo, Susan Petrilli e por mim – (Lecce, Editora Pensa Multimedia, 2010), com o título Parola propria e parola altrui nella sintassi dell’enunciazione, com introdução minha, junto com La parola nella vita e nella poesia. Na mesma coleção, em 2009, apareceu a edição crítica editada por Luciano Ponzio e por mim de Para uma filosofia do ato responsável (1920-1924), junto (em apêndice) ao “Fragmento do I capítulo de O autor e o herói na atividade estética” (1924). Em 1999, organizei a publicação da tradução completa do russo por M. M. De Michiel de Marxismo e filosofia da linguagem (Lecce, Manni).
O "Círculo de Bakhtin" não era uma "escola", no sentido acadêmico do termo, nem Bakhtin era um "fundador", nem, nesse sentido, um "mestre", de modo que não só a expressão "círculo" é incorreta, sobretudo se se quiser atribuir a esse termo um significado de escola, como é também inapropriada a expressão "de Bakhtin", se ela for entendida em termos de derivação, de pertencimento, de genealogia. Trata-se, antes, de uma parceria, de uma colaboração intensa e unida, sob o signo da amizade e com base em interesses e habilidades diversas, a partir das quais todos tratam de temas comuns. E até mesmo quando, em consequência da repressão
como apêndice, que aliás também aparece como parte do título na capa do livro (São Carlos, Pedro & João Editores, 2011).
stalinista, o "Círculo" se desfaz – morrem Volochinov (em 1936) e Medviédev (fuzilado em 1938), e Bakhtin, a partir de 1929, é confinado, antes no Cazaquistão e, em seguida, em Mordóvia –, as vozes de seus companheiros, em um diálogo ininterrupto, continuam a serem ouvidas, na obstinada prossecução de sua pesquisa, até 1975, ano de sua morte.
Separar essas vozes e considerá-las independentes umas das outras significa fazer a mesma coisa que tem sido feita em relação às vozes da polifonia de Dostoiévski: Bakhtin fala a tal propósito de dostoievskismo.
O "dostoievskismo" é um resíduo reacionário, puramente monológico, da polifonia de Dostoiévski. Sempre se fecha nos limites de uma consciência, dissecando-a, cria o culto do equilíbrio do indivíduo isolado. O principal da polifonia de Dostoiésvski é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências, ou seja, de ser interação e a interdependência entre estas.
Devemos aprender não com Raskólnikov ou com Sônia, com Ivan Karamazov ou Zossima, separando as suas vozes do todo polifônico dos romances (e assim deturpando-as) [...] (BAKHTIN, Dostoevskij, Poetica e stilistica, [1963], trad. italiana, Einaudi, 1968, p. 52). 13
Se fizermos essa mesma operação em relação à polifonia do "círculo bakhtiniano", com o nobre propósito de restituir cada obra ao seu "verdadeiro autor", não surpreende que se possa chegar à conclusão, assim como faz Patrick Sériot (Prefácio à edição francesa de Marxismo e Filosofia da Linguagem, cit. p. 87), que "é difícil encontrar um texto mais antidialógico (e menos carnavalesco) que Marxismo e Filosofia da Linguagem, discurso da verdade, palavra autoritária, que não admite hipótese. Volochinov nunca duvida".
Bakhtin ao passo em que critica o "dostoievskismo", acrescenta que, ao contrário,“devemos aprender com o próprio Dostoiévski como criador do romance polifônico” (ibidem). O "dostoievskismo" significa atribuir a palavra à identidade de quem a profere. Para Bakhtin, aprender com Dostoiévski significa, ao contrário, reconhecer a alteridade da palavra, reconhecimento que se opõe ao primado da identidade.
Atualmente está sendo publicado pela Editora Bompiani (Milão), na coleção “Il Pensiero Occidentale” [“O Pensamento Ocidental”], dirigida por Giovanni Reale, a obra Michail Bachtin e il Circolo, Opere 1919-1930 [Mikhail Bakhtin e o Círculo, Obras 1919-1930], organizada por mim, em edição bilíngue italiano-russo (com o texto à frente em russo), que contém os escritos daqueles anos, inéditos ou que apareceram em revistas, assim como os quatro livros: Freudismo; O método formal na Ciência da Literatura; Problemas da Obra de Dostoiévski; Marxismo e Filosofia da Linguagem.

13N.T.: Esta citação está no livro Problemas da Poética de Dostoiévski, 5ed, tradução de Paulo Bezerra, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2010, p. 41.

NB – De todos os conceitos bakhtinianos, qual ou quais pode(m) contribuir com profundidade para a melhoria das relações humanas nas várias esferas de atuação? Ou de que forma os conceitos bakhtinianos poderiam contribuir para a formação do ser humano (ou a reflexão do ser humano, sobre si e sobre o outro, e o mundo que o cerca?)

AP – Primeiramente o evidenciamento do caráter dialógico em cada texto literário e em cada gênero literário. Mesmo um texto não literário, embora em grau inferior, é dialógico: uma prova disso é a própria divisão em parágrafos (que são como respostas a réplicas implícitas) até mesmo de um ensaio ou de um artigo jornalístico. Qualquer texto literário, para ser considerado como tal, requer a presença de mais vozes, de diversos pontos de vista; exige que nele se encontre a escuta do outro. O “eu”, enquanto tal, “é esteticamente improdutivo”, diz Bakhtin. A “revolução copernicana”, de Bakhtin – A revolução bakhtiniana (título do meu livro de 1997, agora ampliado na sua edição brasileira – Editora Contexto, 2008, e segunda edição, 2012) – no plano filosófico, assim como a revolução de Dostoiévski, que Bakhtin evidenciou no plano artístico, dizem respeito ao homem na sua completude, na sua vida, no seu pensar e no seu agir. Em relação à “crítica da razão pura”, de Kant, e à “crítica da razão dialética”, de Sartre, essa revolução bakhtiniana inaugura uma “crítica da razão dialógica”.
Para Bakhtin, o indivíduo humano é dialógico apesar de si; o diálogo não é uma prerrogativa da personalidade humana, mas um limite seu; um obstáculo à sua identidade, à sua autodeterminação; um impedimento à sua definição e realização. Para Bakhtin, o diálogo não é uma espécie de dever moral. Não é o resultado da iniciativa do eu, mas o lugar da sua constituição e manifestação. O diálogo não espera, para existir, que o eu se decida a respeitar o outro. O diálogo que Bakhtin evidencia através de Dostoiévski não depende do respeito do outro. O diálogo não é resultado de uma atitude de abertura ao outro, mas consiste na impossibilidade do fechamento e se evidencia precisamente nas tentativas tragicômicas de fechamento, de autonomia, de indiferença.
O diálogo em Bakhtin, assim como em Dostoiévski, onde Bakhtin o encontra retratado, não é – e ele diz isso explicitamente – um diálogo entre as ideias, como é o diálogo de Platão. Platão interessa-se pela ideia desencarnada, pela ideia enquanto tal, e não como evento dialógico, não como evento do próprio diálogo. Em Platão, a participação da ideia não é participação ao diálogo, mas participação à existência da ideia. Desse modo as vozes diferentes e não indiferentes são anuladas na unidade deste pertencimento comum. Além disso, para Bakhtin, um outro elemento de distinção entre os dois tipos de diálogo deve-se ao fato que, em Dostoiévski, o diálogo, diferentemente daquele de Platão, não é cognoscitivo, não é filosófico. Mais uma vez confirma-se que o outro não é apenas um meio para conhecer a verdade. E é interessante que, para Bakhtin, o diálogo de Dostoiévski é mais próximo do diálogo bíblico e evangélico, por exemplo, do diálogo de Giobbe, pela sua estrutura internamente infinita, sem possibilidade de síntese e fora da esfera do conhecimento.
NB – Em suas últimas conferências no Brasil (março/2012, em São Carlos, Campinas e Araraquara-SP), ficou evidente a urgência de uma “escuta” como um exercício para a humanidade e lugar do diálogo. Como essa compreensão pode ser desenvolvida nas atividades pedagógicas e nas pesquisas em Ciências Humanas?
AP – Intitulei a ampla introdução à edição brasileira (Petrópolis, Vozes, 2007) do livro Fundamentos de Filosofia da Linguagem (versão original: Roma-Bari, Laterza, 1994; 1999) de “A filosofia da linguagem como arte da escuta”. Retornei mais vezes a esta relação entre os estudos linguísticos e a atitude de escuta da palavra. Estou preparando um livro com o título Bakhtin filósofo da escuta.
A atitude fundamental e também o tema recorrente da pesquisa bakhtiniana é a escuta da palavra alheia. A atitude crítica, privada de preconceito, da Filosofia da Linguagem está no reconhecimento da abertura inevitável da palavra própria, da enunciação própria à palavra dos outros. Está aqui o ponto de encontro entre: 1) a terceira parte de Marxismo e filosofia da linguagem, de Volochinov, dedicada ao estudo das formas de enunciação na construção sintática da língua (parte determinante e conclusiva, contrariamente, portanto, ao que tem sido geralmente considerado, isto é, como algo justaposto ou que nada tem a ver com a questão da relação entre o marxismo e a filosofia da linguagem); 2) o capítulo do Dostoiévski de Bakhtin referente a “a palavra em Dostoiévski”; e 3) o ensaio de 1926 de Volochinov, “A palavra na vida e na poesia”, como eu procurei demonstrar na introdução de Parola propria e parola altrui nella sintassi dell’enunciazione (2010, p. 9-72), de M. Bakhtin e V.N. Volochinov, que reúne esses dois textos de Volochinov.
A perspectiva do que eu, assim como Bakhtin, chamo de “filosofia da linguagem”, apresenta-se também como filosofia da escuta, escuta da palavra do outro, da sua recepção e da sua compreensão respondente e responsiva. Como mostrei em The dialogic Nature of Sign (Toronto, Legas, 2006) e na apresentação da edição brasileira, da qual já falei, do livro escrito em coautoria com Patrizia Calefato e Susan Petrilli, Fundamentos de Filosofia da Linguagem (Petrópolis, Vozes, 2007, pp. 9-68), posteriormente retomada como Capítulo I de Lineamenti di semiotica e di filosofia del linguaggio (Graphis, 2008, pp. 3-84), do qual é também coautora Susan Petrilli, o problema fundamental da filosofia da linguagem é o problema do outro e o problema do outro é o problema da palavra, da palavra como voz, reconhecida como um pedido de escuta. Portanto, uma filosofia da linguagem, como arte da escuta. É por isso que, a meu ver, Bakhtin toma Dostoiévski como modelo: Dostoiévski sabia escutar as palavras e sabia compreendê-las como vozes, isto é, nas suas diferenças singulares.
A escuta não é exterior à palavra; não é um acréscimo seu, uma concessão sua, uma iniciativa daquele que a recebe, uma escolha, uma cortesia, um ato de respeito em relação à ela. A escuta, diz Bakhtin, é um elemento constitutivo da palavra, que não pode ser evidenciado pela linguística, a menos que ela se torne metalinguística. Para ele ("O problema do texto", 1960-1961), a palavra, “deseja sempre a escuta, procura a compreensão respondente, e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ad infinitum; não se limita a uma compreensão que ocorre imediatamente, mas sempre vai além (de maneira ilimitada). A palavra faz parte de um diálogo em que o sentido nunca terá fim".
Sim, certamente, as implicações em âmbito pedagógico e nas ciências humanas são muitas e notáveis. Sobretudo a Linguística deveria transformar-se em Linguística da escuta, colocando ao centro de sua reflexão, como unidade fundamental, não a frase, privada de sentido, mas a enunciação, cujo critério para a identificação de suas fronteiras consiste precisamente no sentido: existe uma enunciação quando, escutando-a, se colhe um sentido. A escuta consiste em não tolher tempo ao outro. No plano pedagógico, neste sentido, o tempo é o tempo do outro, e no que diz respeito à escola fundamental, o tempo deve ser o da criança. Assim se intitula um livro que considero de importância fundamental no plano educativo, pedagógico e que eu e Susan Petrilli acolhemos com prazer na coleção "Nel Segno" que dirigimos (Edizioni Giuseppe Laterza, Bari, 2011): Il tempo del bambino. Il pre-texto di una società dell’accoglienza, dell’ascolto e del diritto all’infunzionalità, de Ritalma Rizzo.
Mas, afinal, a arte da escuta deveria ser prática também na Psicologia e na Psicanálise, hoje bem distante de quanto Freud nos ensinou, fundida e confundida com a Psiquiatria. Ocupei-me deste tema nos livros La cifrematica e l’ascolto (Graphis, 2006) e La dissidenza cifrematica (Spirali, Milão, 2008), dedicados à “psicanálise dissidente” de Armando Verdiglione. O comentário de Verdiglione (no livro Medicina e umanità, Spirali, 2004, pp. 292-293) logo após a conferência de Susan Petrilli ao congresso internacional Salute della vita, scienze mediche, humanitas, que foi realizada na Villa Borromeo (Senago, Milão) de 28 a 30 de novembro de 2003, me encorajou neste “empreendimento” nada fácil: “Existe uma afinidade entre os elementos básicos da pesquisa dessa escola de Bari e a nossa própria pesquisa. E me parece que isto possa ser notado e intensificado com uma estreita colaboração, porque são os mesmos temas em torno dos quais temos trabalhado nestes últimos trinta anos”.

NB – O senhor divulga pensamentos e pesquisas de vários teóricos. Como vê o diálogo ou a aproximação dos pensamentos desses teóricos com os propostos por Bakhtin e seu Círculo? Quais os encontros e possibilidades de diálogos teóricos previstos? Ou, perguntando de outra forma: qual dos teóricos, com os quais o senhor trabalha, se sentaria à mesa, hoje, com Bakhtin, para dialogar?

AP – Já me referi a Lévinas. Bakhtin e Lévinas (que era lituano e viveu na Rússia, antes de se transferir para a França) têm em comum a leitura de Dostoiévski, formadora para ambos.

A minha reflexão sobre o pensamento de Lévinas – que é da metade dos anos sessenta, quando o último livro de Lévinas ainda era Totalité et Infini (L’Aia, Nijhoff, 1961) – referia-se à relação de alteridade, à relação interpessoal, à linguagem e ao diálogo. Depois, com o propósito de seguir a sua reflexão sobre o problema da alteridade, me dediquei à leitura das obras sucessivas de Lévinas, a começar com Autrement qu’être (Nijhoff, 1974), que junto com Totalité et Infini, constituiu uma etapa fundamental de seu itinerário especulativo.
Para Lévinas, como para Bakhtin, trata-se, precisamente, da possibilidade de descobrir a alteridade “au coeur même de l’identité”, no próprio coração da identidade, de reencontrar o outro no mesmo; de considerar a relação com o outro não mais em termos de diferença relativa, de pertencimento, de oposição e de distanciamento – a distância necessária para vê-lo, tematizá-lo, objetivá-lo.
É necessário levar em conta a acepção particular que Lévinas dá ao termo ética, acepção que ele se preocupa em precisar de maneira particularmente clara em uma nota de “Langage et proximité” [“Linguagem e proximidade”] (in: LÉVINAS, En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger 14, Paris, Vrin, 1967, p. 225, nota):
Chamamos ética uma relação entre termos, na qual esses não são unidos nem por uma síntese do entendimento nem pela relação de sujeito a objeto e na qual, contudo, um termo pesa ou importa ou é significante para o outro, na qual são ligados por uma intriga que o saber não conseguiria nem esgotar nem desembaraçar.
Esta acepção do termo “ética” é aquela que Susan Petrilli e eu, na esteira de Charles S. Peirce e de Thomas Sebeok (ver: SEBEOK, Global Semiotics, 2001), lhe damos na expressão “semio-ética”: ao propor este termo no nosso livro Semioetica (Roma, Meltemi, 2003), não nos referimos a um novo ramo da Semiótica, mas a uma atitude da Semiótica, uma vez que essa se torna consciente de sua responsabilidade em relação à vida planetária, conforme a sua vocação médica original (a semiótica de Hipócrates e Galeno), e tendo em vista a conexão intercorpórea de todos os seres vivos e, portanto, de todos os signos que a biossemiótica revela.

14 N.T..: A edição em português se chama “Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger”, com tradução de Fernando Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget.

Há diversos autores que me são queridos (começando com Pedro Hispano, além de Bakhtin, Kierkegaard, Marx, Giuseppe Semerari, Rossi-Landi, Blanchot, Barthes, Kristeva, Deleuze, Verdiglione...), diversos tanto no sentido de que são muitos, quanto no sentido de que são diferentes entre eles. Mas todos eles têm em comum a ideia de que é na relação com o outro que se decide o nosso próprio destino, que sem o outro não vamos a lugar nenhum, e a ideia de que contra, em conflito com o outro, presos em nossa própria identidade, morremos e a própria vida, se assim a podermos chamar, rapidamente se enfraquece, se esclerosa e seca.
Em "On échoue toujours à parler de ce qu'on aime" [“Sempre fracassamos quando falamos do que amamos”] (1980), o texto que deveria ter sido lido em Milão, na conferência sobre Stendhal, e que é, talvez, o último texto de Barthes, existe uma anotação nas obras completas que sugere isso (Barthes OEuvre completes [Obra completa], V, Seuil Imec), Roland Barthes imagina uma viagem para Lecce:
Há algumas semanas, fiz uma rápida viagem à Itália. À noite, na estação de trens de Milão, o tempo estava frio, nublado, imundo. Um trem perfeito; cada vagão trazia uma escrita amarela com as palavras 'Milão-Lecce'. Então, tive um sonho. Tomar esse trem, viajar toda a noite e encontrar-me, de manhã, na luz, na doçura, na calma de uma cidade extrema. Ao menos, é assim que a imaginava e pouco importa o que é realmente Lecce, que não conheço (p. 906).
De fato, Barthes não fez essa viagem, se não pela imaginação. Todavia Roland Barthes uma vez, em 1973, foi a Bari, capital da região da Puglia, a mesma em que se encontra Lecce, para realizar, precisamente no dia 5 de abril, uma conferência sobre “A guerra das linguagens”, de manhã, na faculdade de Letras e, à noite, no “Teatro Piccinni”. 1973 foi o ano do meu livro Produzione linguistica e ideologia sociale; consequentemente, a minha presunção de saber tudo sobre a relação entre linguagem e ideologia venceu a minha timidez e discuti animadamente sobre essa questão respondendo várias vezes a Barthes até o fim da sua conferência.
Comecei a ler Roland Barthes a partir de O prazer do texto (1973), como ponto de partida para seus textos anteriores e sem negligenciar qualquer um dos seguintes, incluindo publicações póstumas.
Em 1978, a série Teoria del linguaggio e della letteratura, promovida por mim na Editora Dedalo (que já mencionei), iniciou precisamente com a tradução em italiano (de Giuseppe Mininni) de um livro sobre Barthes: Louis-Jean Calvet, Roland Barthes. Un regard politique sur le signe (1973) 15. Em 1980, na revista "Lectures", dirigida por Vito Carofiglio, Yves Hersant, Ruggero Campagnoli e eu, foi publicado o arquivo chamado Roland Barthes, para o qual eu escrevi "Nel segno di Barthes" (p. 59-68). Em Semiotics and Linguistics (ed. Paul Cobley, Routledge, London, 2001), escrevi o verbete "Roland Barthes". Vinte e cinco anos depois da morte de Roland Barthes, propus ao Departamento de Práticas Linguísticas e Análise de Textos, que dirijo, que lhe fosse dedicado um simpósio internacional, “pour faire le point sur le rôle de son oeuvre aujourd’hui” – para apresentar "um balanço de sua obra hoje", como se anunciava na apresentação do simpósio que aconteceu de 16 a 19 fevereiro de 2005 na Universidade de Bari, sob o título Barthes per Roland Barthes .
O trabalho mais recente dedicado a Barthes (Editora Mimesis, 2010) é o livro Roland Barthes. La visione ottusa (artigos meus, de Julia Ponzio, Giuseppe Mininni, Susan Petrilli, Maria Solimini, Editora Mimesis, 2010).
La poétique de Dostoïevski, tradução francesa do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski (1963), apareceu em 1970 (Seuil), com uma apresentação de Julia Kristeva intitulada "Une poétique ruinée" [“Uma poética arruinada”]. Em 1969, Julia Kristeva tinha publicado Semeiotikè. Recherches pour une sémanalyse, que li em Paris no mesmo ano com grande interesse. Um ensaio deste livro, “Le mot, le dialogue et Le roman” [A palavra, o diálogo e o romance], é dedicado a Bakhtin. Eu publiquei esse ensaio, na tradução italiana de Giuseppe Mininni, no livro que organizei, como já mencionado, Mikhail Bachtin. Semiotica, teoria della letteratura e marxismo. Kristeva (1969) observa:
Escritor e também "estudioso", Bakhtin é um dos primeiros a substituir os cortes estáticos dos textos com um modelo em que a escrita não é, mas se elabora em relação a uma outra estrutura. Esta dinamização do estruturalismo só é possível a partir de um conceito que considera a "palavra literária", não como um ponto (um sentido fixo), mas como uma interseção de superfícies textuais, um diálogo entre várias escrituras: o escritor, o destinatário, o herói (ou o personagem), o contexto cultural atual ou antecedente (p. 106).
Referindo-se direta ou indiretamente a Bakhtin (a este respeito, ver o livro de Kristeva, Polylogue, Seuil, 1977), Kristeva mostrou como funcionam o diálogo e a polifonia no texto literário.
Em 1969, apareceu (para a Editora SGPP) o livro de Julia Joyaux, Le langage, cet inconnu [A linguagem, esta desconhecida]. Julia Joyaux é um pseudônimo: o livro foi republicado em 1981, sob o nome de Julia Kristeva, na Editora Seuil.

15 N. T.: em português: CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes: um olhar político sobre o signo. Lisboa: Vega, s.d.

Minha tradução italiana do livro surgiu em 1992, com uma entrevista que fiz com Kristeva.
Conheci pessoalmente Julia Kristeva em dezembro de 1973, por ocasião do simpósio “Follia e società segregativa” [“Loucura e sociedade segregativa”] (em Milão, de 15 a 16 de dezembro), o segundo promovido por Armando Verdiglione e organizado pelo coletivo “Semiotica e psicanalisi” [“Semiótica e psicanálise”]. Foi um simpósio extraordinário que contou com a presença de Félix Guattari, Serge Leclaire, Jean-Joseph Goux, Daniel Levy, Octave Mannoni, Ferruccio Rossi-Landi, Philippe Sollers. Os anais foram publicados pela Editora Feltrinelli (1974) e organizados por Verdiglione. Neles, estava incluído o importante texto La materia non semiotizzabile [A matéria não semiotizável].
Mais tarde, em 31 de março de 1977, tive o prazer de apresentar Julia Kristeva nas “Giovedì letterari” [“Quintas-feiras literárias”] no Teatro Piccinni, de Bari. Naquela apresentação, eu sublinhava a ligação entre os seus interesses teóricos e o empenho social e político. "Ocupar-se hoje de teoria da linguagem e dos signos em geral não é, de fato", como a própria Kristeva disse, "um gesto inocente": isso põe em discussão hábitos mentais, lugares comuns, comportamentos considerados óbvios e naturais, por meio dos quais os indivíduos que os adotam dão, muitas vezes sem saber, a sua contribuição para a reprodução do sistema social vigente, com suas contradições e desigualdades.
A "semanálise" 16, que Julia Kristeva propõe é ciência das "práticas significantes" do trabalho linguístico e sígnico que cada pessoa compõe dentro de específicas relações sociais de produção; é, portanto, estudo das ideologias sociais, da formação da consciência (vista também no seu papel coercitivo no confronto da alteridade relegada no inconsciente), dos textos da comunicação oficial, da lógica vigente e dos lugares comuns do discurso.
8 de julho de 2013.

NB – Em seu escritório pessoal, percebemos uma figura muito constante, a de uma tartaruga. A que esse ícone, se assim podemos nominá-lo, faz referência em seu campo de pesquisa? Ou em sua vida?

AP – A tartaruga representa uma advertência em relação à arrogância, à exaltação, à soberba do eu. No paradoxo do filósofo de Eleia, Zenão, a lentíssima tartaruga vence o velocíssimo Aquiles, o “Aquiles dos pés velozes”. Na sua autoexaltação, Aquiles concede à tartaruga uma vantagem na competição: partir de um ponto mais a frente em relação a ele. Mas acontece que enquanto Aquiles recupera a vantagem e percorre o caminho concedido, a tartaruga já percorreu um outro pedaço do caminho, e enquanto Aquiles percorre esse, a tartaruga avançou novamente.
16 N.T..: Refere-se ao conceito trabalhado por Julia Kristeva no livro, com tradução em português, “Introdução à Semanálise”, Editora Perspectiva, 1974.

Alguns dizem que o paradoxo funciona porque não se leva em conta o tempo. No entanto, o tempo existe. O tempo é a tartaruga. Quem vence o pé veloz e arrogante de Aquiles é o tempo, que escorre lentamente, tacitamente, silenciosamente, ainda que esse se considere imortal, de natureza semidivina e que tenha sido educado pelo sábio centauro Quíron. No entanto, o tempo, não o tempo que o Eu diz ter ou não ter (para si e para o outro), não o tempo “próprio”, mas o tempo do outro, o outro tempo, o tempo como descontinuidade, o tempo transcendente, l’entretemps [o entretempo] (Lévinas), o intervalo, o espaço de tempo irrecuperável, esse tempo vence também Alexandre o Grande, embora ele, com o seu exército, tenha conseguido alcançar, vencedor e rapidamente, o rio Gange – Alexandre se acreditava um Aquiles ressuscitado, de modo que sempre portava consigo o livro A Ilíada.
fig10
Figura 10. Augusto Ponzio em seu escritório particular, Bari, Itália

Escrevi um conto que se chama “Alexandre e a Tartaruga”, que se encontra no site http://www.latartarugaracconta.com. O Filósofo também é vencido pela tartaruga-tempo, pelo tempo outro em relação àquele que o Eu gerencia ("Quem tem tempo não espera o tempo", "tempo é dinheiro", "O tempo é meu e eu o gerencio"), é também o filósofo, porque o Filósofo não foi instruído por um centauro, metade besta e apenas metade razão, mas por Aristóteles em pessoa. É mais ou menos o sentido do meu livro de 1989, Il filosofo e La tartaruga (Ravenna, Longo Editore).
É por isso que no meu “escritório pessoal”, onde eu poderia ter a presunção
que o tempo é meu e que posso utilizá-lo como quero, o ícone da tartaruga encontra-se como um aviso, uma advertência, como admoestação.
fig11
Figura 11. Tartarugas do escritório pessoal do Prof. Augusto Ponzio.
NB – O que seus estudos e pesquisas apontam para o ensino de Línguas e de Literatura? A partir de seus estudos, pesquisas e contribuições, qual é o lugar da Literatura no ensino de línguas? enunciado, cada texto verbal faz necessariamente parte de um gênero do discurso.

AP – A relação entre língua e enunciação, entre langue e parole, não é uma relação direta, uma relação dual. Essa relação passa pelos gêneros do discurso. Cada

Fala-se sempre não somente em uma certa língua, mas também em um certo gênero do discurso. No texto de 1952-53, “Il problema dei generi di discorso” [“O problema do gênero do discurso”] (trad. italiana em Bachtin, L’autore e l’eroe), Bakhtin se ocupa diretamente dos gêneros literários, tendo a intenção de escrever um livro sobre esse assunto. Ele distingue entre os gêneros primários ou simples, isto é, os gêneros da vida ordinária – os gêneros da representação oficial, da realidade social, dos papéis sociais, das relações cotidianas interpessoais, da fala funcional e objetiva –, e os gêneros secundários, ou indiretos, ou complexos, que representam, figuram os primeiros: são os gêneros da figuração (izobrazenie) literária, os gêneros da palavra indireta. São precisamente estes últimos os que podem por em evidência, em toda a sua amplitude, a disponibilidade da palavra em relação à palavra outra; mostrar como a palavra própria vive da recepção da palavra do outro, da sua interpretação e de sua transmissão, de sua compreensão respondente.
No ensino escolar de uma língua, seja essa a língua chamada “materna” ou uma língua estrangeira, é a Literatura que permite ver concretamente como a língua em questão funciona, quais são suas possibilidades, suas potencialidades. Por meio de um texto literário, posso concretamente mostrar como funciona o diálogo, não só o diálogo exterior, mas também o diálogo interior; posso evidenciar como se reporta o discurso outro, não só na forma do discurso direto ou indireto, mas também do indireto livre, que é recorrente no texto literário. Posso mostrar a interferência entre palavra própria e palavra outra e o caráter, como diz Bakhtin, sempre “semioutro” da palavra. Nenhum outro instrumento, incluindo o instrumento eletrônico mais avançado, mais “interativo”, pode me dar aquilo que um texto literário, suavemente, tacitamente, amorosamente me dá.
NB – E como pensarmos o lugar da Semiótica nos estudos linguísticos?
AP – Saussure já havia compreendido que não se pode fazer Linguística sem Semiótica, sem uma Ciência geral dos signos. Mas para ele, essa Ciência do signo, que ele chamava de Semiologia, deveria se limitar aos signos humanos convencionais e voluntários (excluindo, por exemplo, a análise freudiana que se ocupa dos lapsos não voluntários e de atos involuntários). Ao contrário, é necessária uma Semiótica global, como aquela desenvolvida por Thomas Sebeok (existe um livro sobre Sebeok, escrito por mim e Susan Petrilli, traduzido no Brasil, na Universidade de São Carlos, São Paulo) 17.
Na Semiótica não se pode também prescindir do contributo dado por Bakhtin, que, por um lado, mostrou a conexão entre o estudo dos textos e o da linguagem e, de outro, refletiu sobre o problema da relação eu-outro, sobre problema ético, social, da relação interpessoal, da questão do viver juntos.

17 N.T.: O livro é intitulado Thomas Sebeok e os Signos da Vida (PETRILLI; PONZIO, 2011)

Portanto, é necessário em Semiótica o enfoque que Susan Petrilli e eu indicamos (no próprio título do livro de 2003), Semioetica. A Semioética é bakhtiniana.
NB – Qual livro o senhor indicaria como sendo essencial ao jovem pesquisador e principiante nos estudos bakhtinianos para a compreensão dos conceitos de Bakhtin e do Círculo?

AP – Para uma filosofia do ato responsável, de Bakhtin, traduzido em português por Miotello (São Carlos: Pedro & João Editores, 2010; 2012), e, modéstia à parte, o meu livro: A revolução bakhtiniana, já na sua segunda edição no Brasil, pela Editora Contexto (São Paulo, 2008 e 2012).

NB – Numa situação fictícia de extrema perda, qual livro de Bakhtin e seu Círculo o senhor salvaria?
AP – O livro de Bakhtin sobre Rabelais, livro do humanismo da alteridade, do diálogo, da convivência, da festa.

NB – Qual passagem da obra de Bakhtin e do Círculo o senhor considera primorosa ou essencial à compreensão de sua teoria?

AP – Aquela de Dostoevskij em que (já na primeira edição de 1929 18) Bakhtin faz notar que Dostoiévski, no início de seu trabalho de escritor faz o personagem de seu conto Gente Pobre, Diévuchkin, ler o Capote, de Gogol, reproduzindo seu desapontamento por ter visto Gogol maltratar um colega seu, também funcionário, o protagonista do livro, que é descrito como se fosse um objeto, definido, avaliado, julgado, figurado como “já morto antes de morrer”. Gogol parece dizer ao seu personagem: "É isso que você é, apenas isso”. E o que faz Dostoiévski? Faz justiça a Diévuchkin. Em Dostoiévski, o personagem nunca é descrito, mas ele é escutado. O personagem fala e através da palavra se mostra e também se esconde, diz e nega aquilo que diz. Na obra de Dostoiévski, o autor não fala do personagem, mas fala com o personagem, a sua fala não é na ausência do personagem, mas na sua presença e a ela, o personagem pode reagir. Esta é a dialogicidade e a polifonia de Dostoiévski, que da Literatura deveríamos transportar para a vida, na relação com o outro, com a palavra do outro: é um convite à escuta.

18 N.T.: Trata-se da obra sobre Dostoiévski, um dos trabalhos mais importantes de Bakhtin, Problemas da obra de Dostoiévski (1929), completamente revisto e publicado novamente sob o título Problemas da poética de Dostoiévski (1963). Este último traduzido para o português por Paulo Bezerra, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro.

NB – Qual a sua opinião sobre o livro Bakhtine démasqué (Bakhtin Desmascarado), de Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota?

AP – Os dois autores mencionados introduzem suas investigações e análises textuais declarando que (não conhecendo o russo) basearam-se, no que se refere aos textos assinados por Bakhtin, nas traduções italianas dos livros de Bakhtin, Problemi dell'opera di Dostoevskij [Problemas da obra de Dostoiévski] (1929), tradução de Margherita De Michiel, publicado na Edizioni dal Sud, Modugno (Bari), 1997 (versão citadíssima no livro em questão) e de M. Bakhtin, In dialogo, Conversazioni del 1973 con Viktor Duvakin 19, tradução de Rosa S. Cassotti (2008), publicado em Nápoles, nas Edizioni Scientifiche Italiane (também muito citada), fazendo-se "ajudar" na tradução do italiano por Giuseppe di Salvatore, a quem agradecem (p.16, na edição original). A maior parte de seus argumentos se baseia na “leitura” destas traduções (ver para crer!).
Acrescento, aliás, que quem organizou essas duas publicações fui eu, e que, para cada uma, fiz uma introdução bastante ampla. Essas introduções não só não foram mencionadas – nenhuma das duas – pelos dois autores, mas, ao que tudo indica, não foram nem lidas (quem sabe, omitiram-nas talvez para economizarem nos custos de tradução, visto que não sabem italiano, como certos alunos quando fazem fotocópias, deixando de lado as introduções). Essas teriam refutado ante litteram, ou, pelo menos, colocado em dificuldade a sua acusação, na qual o "mentiroso" é Bakhtin, junto a sua esposa (!), aos amigos Medviédev, Volochinov e a toda a turma dos curadores russos, toda a crítica bakhtiniana em todo o mundo; um "delírio coletivo!". De quem?
Se tivessem lido a introdução ao livro de Bakhtin, In dialogo. Conversazioni del 1973 con Viktor Duvakin, Bronckart & Bota teriam entendido, entre outras coisas, que as “reticências de Bakhtin”, em relação à “paternidade” dos livros da segunda metade dos anos vinte, eram devidas não a um seu eventual embaraço por ser mentiroso, mas ao total desinteresse por questões desse tipo por parte de seu entrevistador, Duvakin, que, aliás, não conhecia Bakhtin, entrevistando-o apenas por ele ser "um velho intelectual", que poderia ter informações sobre a universidade, os círculos intelectuais, os teatros, a arte e a música na "velha Rússia", uma tarefa da qual tinha sido piedosamente encarregado (e pela qual lhe tinham entregue um gravador) pelo reitor da faculdade de onde ele fora expulso por ter testemunhado a favor de um seu ex-aluno acusado de traição contra o Estado soviético.
Todos os outros textos de Bakhtin, de Medviédev e de Volochinov que os dois autores examinaram foram nas suas traduções francesas e inglesas.

19 N.T.: Em português, Mikhail Bakhtin em diálogo – Conversas de 1973 com Viktor Duvakin” (São Carlos, Pedro & João Editores, 2008).

Na base dessa análise textual, em relação à "affaire Bakhtin" (Bakhtine démasqué: Histoire d'un menteur, d'une escroquerie et d'un délire collectif [Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude e de um delírio coletivo 20], 2011), aqueles autores chegaram à decisão (mais que à conclusão) de excluir a paternidade de Bakhtin, não só das obras publicadas com o nome de Volochinov e Medviédev, mas também da primeira e da segunda edição da monografia sobre Dostoiévski, assim como do livro sobre Rabelais. Esse último é apressadamente declarado um plágio de "obras neokantianas e particularmente de Cassirer" (idem, p. 591). Sobre o livro de Rabelais, além dessa declaração, pode-se dizer que não há nada mais, no livro, de análise textual daqueles dois.
Na introdução e nas notas do ensaio de 1929, de Bakhtin, Per una filosofia dell’atto responsabile [Para uma filosofia do ato responsável] (tradução italiana La filosofia dell’atto responsabile, Pensa Multimedia, Lecce, 2010), texto rigorosamente filosófico, a propósito do qual não faz nenhum sentido falar, como fazem os dois inquisidores suíços, de "elementos religiosos" e muito menos de "fenomenologia monológica", apontei a continuidade absoluta entre os interesses iniciais de Bakhtin pela filosofia moral e os interesses pela escritura literária, incluindo a obra de Dostoiévski, de 1929, que os dois "estudiosos da Linguística e Semiótica" atribuem a Medviédev e a Volochinov, porque, entre outras coisas, preso em dezembro de 1928, Bakhtin estava sob prisão domiciliar quando, no início de junho de 1929, foi publicado o livro sobre Dostoiévski (os “estudiosos” acham que, na época, o tempo que se levava para publicar uma obra era muito rápido!?).
Se, além desse texto em italiano, os dois autores em questão não fossem limitados apenas a citar na bibliografia meu ensaio de 1996, "From moral philosophy to philosophy of literature" [“Da filosofia moral à filosofia da literatura”], publicado em inglês e em uma revista Russa (Dialog, Carnival, Kronotop) (único texto meu presente na sua bibliografia), mas o tivessem também lido, teriam podido discutir a minha tese (declarada já no título) da relação de continuidade direta entre a escrita de Bakhtin de 1929 e o "seu" Dostoiévski.
É preciso acrescentar que o livro dos dois “estudiosos de Linguística e Semiótica” não fornece nenhuma contribuição à interpretação das obras de Bakhtin ou de outros que as teriam efetivamente escritas, concentrando-se unicamente na “questão homérica” do pertencimento e da paternidade. Infelizmente não existe ainda, para as obras literárias e de ensaística, algo semelhante ao “DNA” que poderia evitar a necessidade de escrever seiscentas e trinta páginas (o livro dos dois) para resolver essa questão.
Deve-se também acrescentar que apenas as obras de Bakhtin, sem as de autores do Círculo, publicadas na Rússia, ocupam sete volumes (incluindo notas e comentários). Pode-se, portanto ter a ideia da espessura da pesquisa de Bakhtin e a mesquinhez dos dois “smascheratori” [desmascaradores] que tentam a todo custo demonstrar que Bakhtin não é o autor do livro sobre Dostoiévski!

20 N.T.: No Brasil, esta obra foi publicada pela Editora Parábola, em 2012.

NB – Há muitos grupos, no mundo e no Brasil, estudando Bakhtin hoje, dentro das mais diferentes áreas das Ciências Humanas. Qual tipo de estudo o senhor considera importante ou imprescindível e qual o senhor considera improdutivo (infuncional)?
AP – Eu já aconselhei que se lesse e não se estudasse a obra de Bakhtin e do seu Círculo. Vivendo, não há tempo para estudar. E, portanto, o estudo torna-se algo grudento, interessado, instrumentalizado. Mas “vivendo” há tempo para ler. Quem lê vive e viaja. Ler é como amar de verdade: o amor é desinteressado, infuncional, por nada; é uma relação de verdade. Estudar é dar para receber, por interesse, por conveniência, pela contrapartida, para obter. Não é uma relação verdadeira com o texto, com a palavra. Gostaria de nunca ser tratado assim e, portanto, gostaria que os livros que escrevi nunca fossem tratados assim. E não gostaria que assim fossem tratados os textos que amo, entre os quais as obras de Bakhtin e de seu Círculo.
fig12
Figura 12. Sala da Coordenação do Departamento de Práticas Linguísticas e Análise de Textos, na Universidade de Bari. Neiva de S. Boeno em visita ao Prof. Augusto Ponzio. jan/2013.

Produção bibliográfica (em português)
1. Livros
PETRILLI, Susan & PONZIO, Augusto. Thomas Sebeok e os Signos da Vida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.
PONZIO, Augusto; CALEFATO, Patrizia; PETRILLI, Susan. Fundamentos de filosofia da linguagem. Tradução de Ephraim F. Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
______. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenador de tradução Valdemir Miotello. 1ª edição. São Paulo: Contexto, 2009.
______. Encontros de palavras. O outro no discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Dialogando sobre diálogo na perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
______. Linguística chomskyana e ideologia social. Tradução de Carlos Alberto Faraco. Curitiba: Ed. UFPR, 2012.
______. No Círculo com Mikhail Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
2. Introduções para obras de edição brasileira
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do Ato Responsável. Organizado por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Introdução à edição brasileira - Filosofia da linguagem como arte da escuta. In: PONZIO et al. Fundamentos de Filosofia da Linguagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
______. O símbolo e o encontro com o outro na obra de Bakhtin. In: BAKHTIN, M.M. Mikhail Bakhtin em diálogo – Conversas de 1973 com Viktor Duvakin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
______. Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta. In: BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

3. Artigos
______. O pensamento dialógico de Bakhtin e do seu círculo como inclassificável. In: PAULA, L. & STAFUZZA, G. (Org.). O Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Vol. 1. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
______. “Questions de méthode”. A obra de Pavel Medvedev nos estudos literários e outros. In: GEGE-UFSCar – Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
Augusto Ponzio.
E-mail: augustoponzio@libero.it
 
Torna ai contenuti | Torna al menu